Quem vê força não vê coração

Entre arremessos, maquiagens e estudos, Keely Medeiros mostra que é possível conciliar “vários papéis”

Mais alta e mais forte do que a maioria das colegas da sua idade, Keely Medeiros (33) sempre gostou de praticar esportes. “Eu era aquela garota que no ensino médio fazia tudo quanto era esporte, só queria estar com os meninos na quadra”. Aos 9 anos de idade fazia karatê e por volta dos 10, 11 anos teve os primeiros contatos com o atletismo. Também chegou a atuar nos coletivos com passagem pelo vôlei e breve carreira no basquete, mas foi arremessando peso que ela acabou se encontrando.

Keely Christinne Pinho Rodrigues Medeiros, faz parte da equipe de atletismo do Pinheiros desde 2011, dedicando-se à prova do arremesso do peso. Ela é uma das principais arremessadoras brasileiras e inclusive já representou o país em grandes competições, como os Jogos Pan-Americanos de Guadalajara (2011). “Eu costumo dizer que não fui eu quem escolheu o atletismo, foi o atletismo que me escolheu”, declara a atleta que após um primeiro contato de forma casual com a modalidade, quase chegou a seguir carreira em outro esporte, mas acabou se reencontrando com o atletismo.

A arremessadora conta que estudava em uma escola em Roraima, que tradicionalmente costumava participar dos jogos escolares e que sempre se saia bem, vencendo suas provas e colecionando títulos. Em determinado ano a instituição parecia ameaçada de não se sair vitoriosa, como de costume, e seu professor de educação física na intenção de manter o histórico de bons resultados, saiu inscrevendo todos os alunos possíveis, em várias modalidades.

“Eu já estava inscrita no karatê, no basquete e no vôlei, então ele olhou para mim e falou: ‘você vai no arremesso de peso também’. Eu disse que não iria porque na época eu era gordinha e até sofria bullying. Na minha cabeça, havia preconceito e pensava: se o pessoal já me enche o saco, imagine se eu fizer arremesso de peso, que é esporte de gordinho?”, relembra Keely.

O professor ligou para a mãe dela na tentativa de convencê-la a aceitar o desafio. A mãe por sua vez, usou um argumento bem convincente: “ou você vai, ou você apanha”. Então a jovem não contestou mais.
“Cheguei faltando uns três minutos para a competição, o professor ensinou rapidinho o que eu tinha que fazer e eu fui. Arremessei e acabei ganhando. Eu nem sabia que os Jogos Escolares eram seletivos para o Campeonato Nacional. Com uma menina de cada estado, fiquei em quarto lugar, mesmo sem saber direito o que estava fazendo. Esse professor acabou mudando minha vida, tanto que, anos mais tarde passei a fazer do arremesso minha profissão. Retornei a Roraima para encontra-lo e agradecer”.

Divisor de Águas
A arremessadora conta que estudar sempre foi algo que considerou primordial. Foi por meio do esporte que ela não só construiu uma carreira como viu surgirem diversas oportunidades. Após concluir o ensino fundamental em escola pública, foi jogando basquete que garantiu bolsa no ensino médio em escola particular. Chegou a jogar por Tocantins e no Rio Grande do Sul, mas percebeu que tinha certa dificuldade com o esporte coletivo. “Às vezes eu saia do jogo toda ralada e não conseguia ter a mesma intensidade nas minhas companheiras. Optei por uma modalidade individual, em que o resultado dependeria apenas do meu esforço”.

No primeiro contato com o atletismo em Roraima, mesmo se destacando, não deu andamento por falta de suporte e condições de treino, mas acabou novamente se deparando com a modalidade durante outra competição escolar, representando o Rio Grande do Sul, jogando basquete. Devido ao seu histórico, foi inscrita novamente no atletismo e voltou a repetir o bom desempenho, ganhando inclusive das meninas que representavam um clube tradicional, que fez a proposta para que Keely se juntasse a equipe.

Em 2008 teve uma nova oportunidade, ganhando bolsa para estudar em uma universidade na Flórida (EUA). “Na época estava muito difícil continuar sendo atleta aqui. Eu iria parar porque a equipe gaúcha estava acabando. As grandes instituições ficavam em São Paulo, mas eu ainda não conseguia projeção, mesmo entre as três melhores do Brasil. Decidi ir para os Estados Unidos, onde me formei em Administração Esportiva com especialização em Business”.

Foi em solo norte-americano que o amor pelo atletismo se consolidou. Dividindo-se entre treinos e estudos, Keely adquiriu a disciplina necessária. A atleta avalia que um dos pontos fortes do país é justamente o fato de esporte e educação andarem lado a lado. A obrigação de sair-se bem nas matérias para não correr risco de ser reprovada e perder a bolsa e, por consequência, deixar de treinar, era a motivação para que se mantivesse sempre atenta aos dois lados. Mesmo em momentos difíceis, como duas cirurgias delicada, uma na coluna e outra no quadril, a fizeram pensar em desistir. Ao contrário, procurou aproveitar ao máximo a experiência internacional e as dificuldades, como aprendizado.

“Todo grande atleta americano que a gente conhece já passou por uma universidade. São poucos os que foram direto para o esporte, a maioria começou na universidade. No Brasil ainda não se entende muito bem essa necessidade. Dificilmente a gente recebe incentivando para estudar”.

Em 2011 assinou contrato com o Pinheiros, enquanto ainda morava nos Estados Unidos e em 2013 retornou definitivamente para o Brasil. No Pinheiros, deu continuidade aos estudos paralelamente ao atletismo. O convênio do Clube com a UNIP, permitiu que obtivesse bolsa e decidiu cursar Administração também no Brasil. Keely relembra que não foi uma tarefa fácil, mas contando com a compreensão de professores e dirigentes, além de seu esforço, conseguiu se formar em quatro anos, sem nenhuma “DP”.

“Eu sempre enfatizo muito para todos os atletas a necessidade de estudar. Hoje tenho duas faculdades e inglês fluente, graças ao esporte. Às vezes o esporte traz tantas oportunidades, mas nós não conseguimos agarrá-las”.

Mundo da beleza
Pensando em levantar um recurso extra, a atleta decidiu engajar-se em um novo desafio em meados de 2019 e passou a conciliar a rotina de treinos e competições com a atividade de consultora de beleza para uma grande marca de maquiagens e cosméticos.
“Todo mundo vê a gente como bruta. Eu sou sim bruta quando tem que ser, mas também sei ser feminina. As pessoas as vezes só veem as cargas que a gente levanta, mas dentro de mim existe uma mulher que chora, que é supersensível, que é meiga. Posso não demonstrar, mas isso me afeta. Entrei no ramo pela questão financeira, porque eu queria competir fora do País e buscar classificação para as Olímpiadas, mas também porque queria aprender a me cuidar melhor”.

Quem convive com Keely logo começou a notar a diferença, vendo a arremessadora se maquiar com mais frequência inclusive para treinar e competir. O fato de ser atleta e se expor a extremo esforço físico, contribuiu ainda mais com as vendas e garantiu a credibilidade do produto.

“Comecei a usar e postar nas redes. Passei a me arrumar com mais capricho. Diferentemente de uma blogueira ou outra pessoa em que você não sabe se pode ou não confiar. Era uma pessoa conhecida, que postava na vida real, em uma competição com chuva ou com sol. As pessoas mais próximas também divulgavam e me apoiavam. Compravam para me ajudar e acabavam gostando e se cuidando também. ”

Do Esporte para o Mercado de Trabalho
Devido à pandemia, o trabalho paralelo como consultora de beleza acabou ficando mais difícil e por isso Keely optou por dar uma pausa na atividade. E mesmo com as mudanças de planos, com as Olímpiadas adiadas e os treinos e competições suspensos temporariamente, aproveitou o dinheiro que conseguiu guardar para manter os custos extras com suplementos, condicionamento físico e outras necessidades de atleta.

Impedida de exercer a profissão de forma integral devido à quarentena, e também pensando em uma transição futura, a arremessadora do Pinheiros mais uma vez se viu diante de uma nova oportunidade e agarrou. A agência de marketing digital onde o seu então noivo trabalhava, estava precisando de alguém para produzir conteúdo para um blog de um dos seus clientes, uma academia.

Keely conhecia os donos da empresa e, reunindo seu conhecimento na área de esporte ao fato de gostar de escrever nas redes, passou a fazer parte da equipe, produzindo conteúdo para o blog. Já agregou inclusive outras funções, ajudando também a cuidar das redes sociais não só da academia, mas de outros clientes da agência.

As mudanças foram intensas ao longo do caminho de Keely. A atleta se casou e agora acumula mais uma função no seu dia-a-dia, a de esposa, mas procura manter-se equilibrada em todos os âmbitos, reinventando-se e se preparando para futuro, ciente de que a carreira de atleta é curta.

“Eu sempre entendi que a gente tem uma data de validade, que precisamos estudar e estarmos prontos para o mercado de trabalho. Só tenho a agradecer a todos que me ofereceram cada oportunidade. Nós atletas desenvolvemos características de profissionais que muitas empresas precisam, só não temos a experiência necessária. Ganhar um voto de confiança faz toda diferença. Eu estou recebendo essa oportunidade”